sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O querer e o poder ser arquiteto

 Para estudar Arquitetura, na consideração de que esta é uma arte, há que atiçar a veia artística, claro! Mas ninguém precisa ser um artista excepcional para se dar bem no curso de arquitetura e urbanismo. O importante é ter boas idéias e a capacidade de transmiti-las, o que se faz principalmente lançando mão dos recursos gráficos. Então, dominar as técnicas de desenho livre e técnico é fundamental!

Quem quiser estudar arquitetura - e arquiteto estuda para sempre - precisa exercitar o raciocínio espacial e geométrico, o que inclui ainda ter habilidade para construir maquetes tridimensionais. Outro aspecto fundamental é ter o sentido visual crítico, capaz de escrutinar os espaços, livres e confinados. Quem deseja ser arquiteto, de antemão deve ter repertório em filosofia, sociologia e história, "saber alguma coisa sobre tudo", como apregoa Matthew Frederick em seu livro "101 Lições que aprendi na escola de arquitetura". Quem for preguiçoso, vaidoso ou modesto demais, nem deve passar perto da faculdade. Há exceção? Sim, o que justifica a regra! Pelo menos existe um caso do qual me lembro de chofre, o do "colega" Tião, nome fictício de um personagem real. Ele recebeu, de direito, o título "cartorial" de arquiteto, mas sem, na realidade sê-lo de fato.

Quando ingressei na escola de arquitetura eu já não era calouro da UnB, vinha do curso de engenharia mecânica para o qual fora aprovado pelo vestibular três anos antes. Eu era desenhista mecânico antes de entrar na Universidade e pensei inicialmente que a engenharia homônima seria meu caminho natural. Errado! Descobri que deveria estudar arquitetura durante o curso de desenho técnico, que fiz junto com colegas de diversas opções, principalmente aquela gente talentosa do IAU (o então Instituto de Artes e Arquitetura da UnB). Tentei em vão uma transferência administrativa, mas só consegui a mudança depois de mais um exame vestibular, seguindo orientação de Salviano Antonio Guimarães Borges, mais tarde meu professor e amigo.

Por causa dessa maratona de mudança de curso e o aproveitamento de mais de dois anos em créditos conquistados no curso de engenharia, já encontrei minha turma avançada e composta com os colegas que me acompanhariam à formatura quatro anos depois. No meio deles, de nós, já estava instalada a figura beirando a folclórica do Tião. Ele era bonachão, simplório e desprovido de maldades aparentes. Para dizer a verdade, sempre me pareceu ser sua presença na escola superior uma dessas aberrações possíveis em decorrência das provas de múltipla escolha dos vestibulares da época, que ainda não evocavam as habilidades específicas. Sei que a probabilidade de alguém entrar era remota, mas que existia, existia! A prova para mim e outros estava na presença do Tião entre nós, ali.

A capacidade intelectual do Tião era patente e de diagnóstico rápido para quem o argüisse: talvez dois ou três neurônios e uma base cultural semelhante a de qualquer pilha de tijolos de concreto. Não era capaz de analisar com alguma aproximação, nem para jogar palitinho nos intervalos de almoço do bandeijão (como chamávamos o restaurante universitário). Mas, diga-se, sempre foi muito querido por todos, uma unanimidade entre os colegas e outros companheiros, numa espécie de paternalismo coletivo com o qual tratávamos o Tião. Por causa disto, enquanto esteve na UnB, nada lhe faltava: nem carinho ou amizade, nem uns trocados a fundo perdido quando precisasse de algum, nem uma carona, nem uma bela cola nas provas mais difíceis.

Quando me juntei à turma esta já havia tomado uma decisão exótica: "o Tião se formaria arquiteto e, para tal, todos e cada um dos colegas fariam-lhe as tarefas incluindo-o nas equipes de trabalhos, lhe dariam colas e até fariam por ele provas onde tal prática a oportunidade fizesse possível". Aliás, essa decisão ao mesmo tempo coletiva e anônima fora herdada de três ou quatro turmas anteriores que haviam sobrepassado o Tião na grade curricular, cabendo a minha turma encerrar a empreitada por razões práticas. E assim foi feito até que chegou o momento da graduação e o Tião estava formalmente habilitado a colar grau.

Sem surpresa para nós estudantes, jovens um tanto irresponsáveis na prática daquela chacota, mas para o espanto dos professores e funcionários, o Tião foi diplomado com pompa e circunstância. Naquela ocasião me diverti com a "vitória" da turma em levar aquela "zebra" aos píncaros da glória. Mais tarde, na vida, senti um certo "remorso" de ter participado disto embora - confesso - ainda me divirto, lembrando dos episódios dessa aventura irresponsável.

Porém, mais do que um tanto envergonhado de ter participado da travessura de levar um mentecapto à graduação, percebo que aquela prática inconsequente ainda persiste em dias atuais; de vez em quando desconfio que dentre meus alunos se estebelece algum conluios de estudantes na tentativa de ajudar a promover outros Tiões à festa de formatura e - ilusão - ao mercado de trabalho. Entretanto, como ignorei no passado, se esquecem que o mercado não se engana, descobre um intruso em dois tempos e o retira, rápido; como, alias, fez com o Tião.

Segundo soube de boa fonte, "para o bem do Brasil", o Tião trabalha noutra atividade e está por se aposentar. Isto quer dizer que nós, seus antigos "tutores", desperdiçamos tempo precioso com uma brincadeira infantil e que, felizmente, há de se encerrar sem consequências nefastas.

Se puder dar um conselho depois de tantos anos dessa aventura, diria que ninguém seja tutor de gente que dependa de parasitar os colegas, como foi o caso "Tião"! Porém, antes de tudo, que ninguém se posicione às custas do talento dos outros, que cada um recrute sua própria capacidade, encontre seu próprio brilho e se coloque com seus pares à disposição da sociedade, sempre para aperfeiçoá-la.

Nenhum comentário: