domingo, 27 de março de 2011

Uma lição de Jerusalém

Planaltina - DF
Fundada 1818, passada à condição de vila em 1859 e
incorporada ao Distrito Federal em 1960.
Museu Regional - Praça Salviano Moneiro Guimarães
O casario bandeirante que restou na centenária Planaltina testemunha até hoje a solidão dos tempos que ela ansiava pela mudança da capital para o interior do Brasil. Nesse cenário emoldurado pelas ruas da primeira cidade satélite de Brasília, como funcionário público, vivi um dos mais didáticos episódios de minha formação, que agora compartilho com alunos, colegas e leitores:

Em 1979 o arquiteto e professor da UnB, Salviano Antônio Guimarães Borges, regressou a suas origens planaltinenses nomeado administrador regional. Sua luta para preservar o perfil bucólico e a qualidade de vida original dos habitantes daquela cidade pioneira, sóco da ocupação do Planalto Central do Brasil, muitas vezes foi atacada por especuladores imobiliários e vencida por políticos demagogos que eventualmente o sucederam. Em sua equipe de trabalho havia muitos técnicos ilibados e voluntários sinceros, dentre os quais se destacaram Antônio Carlos Moraes de Castro, presidente do IAB/DF, Lauro Duarte d'Oliveira, um dos fundadores do Clube dos Pioneiros de Brasília, Elenice Maranesi, paisagista e pianista; Eurico João Salviati, professor da UnB; Gisela Guimarães, paisagista (viúva de Paulo Magalhães).  Envolvido nesse clima, destas e doutras personalidades, na qualidade de aprendiz e colaborador, primeiro como desenhista e depois como arquiteto, me vi aos 25 anos na função de diretor regional de licenciamento e fiscalização de obras. 

Assim, há exatos 30 anos, na manhã duma segunda-feira, eu e meus colegas nos deparamos com um sinistro: o casarão ancestral que abrigava a loja de Hussein-Abdul Al-Hallil (um nome fictício para um personagem real) jazia em escombros na esquina de duas ruas importantes do setor tradicional da cidade. Aquilo que fora um singelo exemplar da arquitetura sertaneja “pré-JK” agonizara no fim de semana expondo as marcas das ferramentas de seus algozes. Havia rastro de trator, cabos quebrados de picaretas e das marretas assassinas. Não fora vendaval. Portanto, era coisa feita por gente! Nenhuma mercadoria da extinta loja fora deixada como testemunha no “local do crime”. Ao contrário, foram todas retiradas cuidadosamente ao depósito dos fundos, outrora oculto pela fachada da antiga casa de comércio.

Dez minutos de prosa à porta da padaria foram suficientes para revelar os autores daquele delito, seu mandante e os requintes de crueldade cometidos contra o indefeso edifício. No recesso do descanso semanal, uma horda de infiéis chefiados pelo mais audaz dos sarracenos brandiram ali suas armas. Despiram-lhe primeiro da dignidade das telhas coloniais que lhe protegiam há décadas das intempéries. Desbarataram-lhe a trama das ripas, caibros e terças e do vigamento. Arrancaram-lhe as esquadrias anciãs, já meio cegas, mas ainda vivas. Tombaram-lhe as colunas de ipê. Desmilingüiram-lhe cada um dos seus adobes como quem debulha o milho maduro. Rasparam-lhe os ladrilhos e deixaram-lhe exposto o baldrame descarnado, só com pedras antigas. Fora um suplício de cruzado!

Planaltina/DF
de 48 mil habitantes
em 1979 a 234 mil em 2005
"Progresso?"
Tão arrasados quanto o casarão tombado, porém animados pela indignação, nós, as "autoridades" de plantão, demos aos cruzados sob nossa bandeira a ordem de captura: “Tragam o responsável!”

Diante de nós o "mouro infiel” escutou silencioso toda uma ladainha sobre o valor da arquitetura como elemento compositor da perpetuação da cultura dos povos. Ouviu-se toda a teoria dos elementos da linguagem estética e da História da Arte. Em sua quietude, diante do verdugo-mor, o réu parecia entender a herança lusitana impressa na simplicidade da Arquitetura Colonial Brasileira. Sua expressão e o balouçar "afirmativo" de cabeça insinuava compreensão do que dizíamos sobre as proporções do pentagrama de Pitágoras, da “Regra de Ouro” e da beleza da “Série de Fibonati”. Seu olhar constrangido diante da preleção das "autoridades" dava aparência de fazê-lo refletir, talvez, para um coração contrito pelo arrependimento. O ismaelita parecia demonstrar também, àquela altura da inquisição, disposto até a arder na fogueira e, assim, ganhar o Paraíso prometido pelo Papa aos arrependidos. “Os humildes serão exaltados”!

Entretanto, inesperadamente, o contraditório nasceu com veemência da garganta do palestino ao perceber que seu “pecado” estava na consideração de Planaltina como sendo cidade histórica, sobretudo por sua antigüidade. Entre um maranhão de palavras arrastadas pelo sotaque arabesco, o comerciante contestou: “Não, doutores! Eu só quer traz progresso para Planaltina: tirar casa velha, fazer prédio grande, moderno! Mais conforto para freguês, mais progresso para Planaltina. Planaltina não é cidade velha, não! Planaltina cidade nova e precisa crescer! Hussein sabe desse negócio porque Hussein nasceu numa cidade muito velha, tudo antigo demais do conta!"

Jerusalém
Capital de duas nações, sagrada para três religiões,
contemplada pela História há quase 3 mil anos
Diante da insubordinação do “turco”, no rescaldo da discórdia, uma pergunta desdenhosa partiu de súbito de um dos bispos daquela inquisição prepotente: “Qual é sua cidade, senhor Hussein?” Para o assombro do clero improvisado, todos os cristãos presentes ouviram atônitos a mais retumbante das respostas plausíveis: “JERUSALÉM!”
Silêncio geral... Fim de papo!


Alguns anos passaram mas o tempo nunca me separou daquele episódio. Toda vez que passo pelas ruas de Planaltina recordo-me do casarão tombado. No lugar dele, existe agora um prediozinho sem personalidade que foi erguido em nome do “progresso” apregoado pelo "apóstata" diante da inquisição. O tempo passou. A pequena Planaltina de antanho hoje está enorme, inchada de gente que veio de longe de lá, como viera antes o senhor Hussein. Do mesmo modo como Planaltina se transformou, eu também mudei. Aprendi com o tempo que as coisas vistas sob uma perspectiva única, geralmente trazem consigo uma ilusão de óptica e que a idéia de uma só cabeça dificilmente será boa, afinal.

Típica mercearia
"mid-sized chain grocery store"
de Chicago
Hussein, que mais tarde revelou para mim uma amizade sincera e duradoura, foi buscar em outras plagas os instrumentos para extravasar sua ânsia de "progresso". Soube que ele viveu em Chicago, onde seus descendentes herdaram uma pequena rede de mercearias de bairro, mas que Hussein já teria falecido em 2001.


Quase tudo o tempo buscou apagar em sua marcha inexorável, menos o ecoar da voz do comerciante palestino pelas paredes de minhas lembranças, a exclamar com firmeza e, quem sabe, sabedoria: “JERUZALÉM!"

segunda-feira, 21 de março de 2011

Administrar o próprio sonho faz toda diferença

Ninguém poderá conduzir o outro;
cada um deve protagonizar seu próprio destino
Esta é uma história verídica de empreendedorismo, de alguém que nunca renunciou ser o protagonista de seu próprio destino e que com sua ação influenciava positivamente quem marchasse a seu lado:

Tenho um amigo a quem, aqui, para preservar-lhe a intimidade, chamarei “Cícero”. Exemplar pai de família, diga-se antes! Mas, além, foi dos mais expoentes mestres em sua especialidade na Universidade de Brasília. Amado pelos alunos e colegas, por muitas vezes liderou os companheiros na escola e no trabalho, inclusive como empreendedor de negócios. Nunca temeu o incerto.

exímio cozinheiro e professava esse talento
Além de professor talentoso, Cícero é exímio cozinheiro e demonstra isto, principalmente, na forma de massas e outras especialidades da mesa italiana. Seus méritos de chef de cousine eram tantos e tão apreciados que, a certo momento, somado ao espírito empresário, logo seu hobby se tornara nova e promissora fonte de renda. A garagem e alguns cômodos de sua casa haviam se transformado em pouco tempo numa agitada fábrica de comida pré-congelada e outras especialidades como biscoitos e pão de queijo. Tudo era feito com esmero e refinamento. Esse sucesso de público encorajara meu amigo a profissionalizar mais o negócio e ampliá-lo. Adquiriu um lote industrial e começou a executar seu projeto de transformar o hobby numa cornucópia de prazer e receita.

Cícero, embora conhecedor das técnicas, artes e ofícios, do espírito inquieto e das múltiplas habilidades, naquele momento estava atarefadíssimo com compromissos assumidos anteriormente e com sua cátedra. Por isto resolveu confiar-me o projeto e a construção da fábrica de alimentos. Em pouco tempo estávamos com o alvará de construção nas mãos e com as obras em frenético ritmo com a finalidade de fazer do sonho de Cícero uma realidade em tempo recorde.

A descrição do cenário a seguir é essencial para expressar uma das muitas lições que aprendi durante o verão de minha vida, inclusive com meu querido amigo Cícero. Importa lembrar que naquele tempo de inflação galopante , era comum alterações de estratégias de compra ou de condução de um processo construtivo, devida à variação das cotações financeiras e as taxas de aplicação. As formas de pagamento, na prática, podiam significar alterações significativas de preços e, consequentemente, mudanças bruscas de procedimentos.

não parecia, em nada, com a ferramenta
útil e corriqueira de agora
Na época, o telefone celular não parecia, em nada, com a ferramenta útil e corriqueira de agora. Era minha rotina percorrer obras pela manhã, bem cedo; dar encaminhamentos, fazer previsões e comunicá-las à central de compras com vistas às necessidades futuras, tanto de insumos quanto de mão-de-obra. Mal chegava  à obra da fábrica, recebia uma ligação pelo telefone fixo no escritório do canteiro: era sistematicamente o Cícero. Sua saudação matinal soava sempre peculiar e animadora e sua comunicação muito curta e objetiva: “Oi, como vai? Estou ligando para saber se você precisa de alguma coisa especial hoje”. Aí, conversávamos um pouquinho.

Eu passava no escritório de minha empresa, para atender aos despachos administrativos, somente depois do almoço, após percorrer também os bancos. Naqueles tempos o movimento bancário ainda requeria a presença física dos clientes para as mais simples operações que hoje são realizadas por meio eletrônico. Havia o agravante do ritmo inflacionário de então, que obrigava as pessoas a manterem os ativos muito bem assistidos, para não serem completamente liquidados pela desvalorização monetária. Finda a exaustiva trilha entre canteiros de obras e filas de bancos eu ia finalmente cumprir o expediente burocrático do escritório da firma, faina que se estendia à noite. Ao chegar da rua antes ou pouco depois de sentar-me à mesa ou à prancheta, o telefone tocava. Era invariavelmente o Cícero. Sua saudação era a mesma expressão de simpatia, reveladora de sua onipresença, algo assim: “Oi, como vai? O gerente me disse que você já esteve no banco e que está tudo bem. Eu só estou ligando para saber se você precisa de alguma coisa especial, além das previsões”.

Não aprendi com ele, como bem poderia,
lições de engenharia ou de arquitetura
Cícero nunca havia sido meu professor durante os anos que passei na Universidade. Esse privilégio que tive fora transferido para o tempo em convivi com ele noutras circunstâncias de ações políticas, corporativas e a partir da construção de sua fábrica de alimentos. Não aprendi com ele, como bem poderia, lições de engenharia ou de arquitetura. Nem mesmo, sequer, retive na memória uma de suas maravilhosas receitas da cozinha italiana. Meu aprendizado com Cícero foi muito mais valioso, foi sobre a formalização da postura estratégica de quem deseja ver realizada uma idéia cuja concretização depende também da ação de terceiros: o controle sistemático, comprometido e positivo. Esta foi uma grande lição que Cícero me deu, demonstrada não diretamente pelo que falava mas, antes, pela ação de interagir comigo. Ele estava atento e amplamente interessado em colaborar na concretização de seu sonho, sem surpresas ou esforços desperdiçados. Ele me comunicava estar presente no processo, pró-ativo e sinérgico em relação ao que planejara.

atenção ao sonho e protagonismo
quanto ao próprio destino
Embora eu tivesse me entregado a gerência do processo, Cícero sempre me sinalizava claramente que era ele o líder, e isto era importante para manter seu interesse na prioridade de meus afazeres.

Testemunho quase todos os dias jovens estudantes abandonando seus sonhos nas mãos de professores e colegas, deixando somente por conta destes a condução de seus cursos rumo à graduação como arquitetos e urbanistas. Gostaria que fosse diferente, que os alunos fossem mais exigentes, que dissessem "presente!" além do momento de responder à chamada, que fossem mais parecidos com meu amigo Cícero, a quem recordo invariavelmente como exemplo de atenção ao sonho e protagonismo quanto ao próprio destino.



quarta-feira, 9 de março de 2011

Maquetes de papel

Santuário do Senhor dos Milagres e Stª Rosa de Lima
EQN 206/207 - Brasília - 1994
Aqº Rogério C. de M. Franco
Na semana passada me chegou às mãos um exemplar do livro "Maquetes de Papel", de Paulo Mendes da Rocha (Ed. Cosac Naify). Ao lê-lo me remeti a pelo menos 32 anos atrás, quando terminava meu curso de graduação na Universidade de Brasília. Nessa época, o então presidente do IAB, Antônio Carlos Moraes de Castro (*1940), levou a Brasília alguns ilustres arquitetos para discutir a prática e o ensino. Foi iniciativa das mais proveitosas para nós que pudemos testemunhar e participar daquela primavera cultural, no ocaso da ditadura iniciada em 1964.

Arqº Jorge Machado Moreira
(*1904/+1994)
Como meu amigo Moraes de Castro fosse, além de militante ativo nas causas da Arquitetura, também um mestre informal que tive fora da faculdade, pois trabalhávamos juntos em Planaltina (cidade-satélite de Brasília), tive o privilégio de compartilhar com ele, por horas a fio, a companhia e as lições daqueles ilustres visitantes: Jorge Machado Moreira (*1904/+1994), Paulo Mendes da Rocha (*1928), Ruy Otake (*1928), Severiano Mário Porto (*1930) e outros. Dos dois primeiros ouvi diretamente recomendações no sentido de manter, além do risco de lápis no papel, a composição via maquetes de massa; tudo simples: de papel, papelão, cola, fita adesiva e outros arranjos expeditos; que sempre fossem elementos fundamentais de interação entre o pensamento inspirado da criação e o momento do trabalho de desenho técnico, resultante da ideia concebida. Nunca deixei de seguir essa orientação, talvez uma das razões de satisfação e relativo sucesso profissionais.

C. Ens. Téc. Engº J. Antonio Cardoso
EQN 206/207 - Brasília - 1994
Aqº Rogério C. de M. Franco
Na prancheta ou no magistério, muitos arquitetos convergem ao considerarem o desenho livre, natural, ao lado da cultura e da imaginação, como sendo um dos mais eficientes instrumentos para transformar ideias em realidades concretas. O que às vezes tem ficado esquecido dos profissionais mais novos e omitido dos estudantes destes dias é o fato de que desenho se faz no plano e no espaço. Por isto, construir maquetes torna-se fundamental para estabelecer diálogo entre a imaginação e a comunicação dos propósitos arquitetônicos entre seus autores ou entre a concepção ideal e os estudos mais avançados das possibilidades.

A maquete, abandonada como ferramenta, desprezada do hábito recente no processo do projeto arquitetônico viajou da Arquitetura propriamente dita para morar no processo de venda dos produtos arquitetônicos. Maquetes passaram quase exclusivamente a ser parte das ações de mercado quando se prestam mais à conquista e a fidelização de clientes. Isto acontece quando empreendedores imobiliários ou autoridades querem oferecer tangibilidade a obras ainda não concluídas, antecipando-as em escala reduzida, como intenções mais palpáveis.

Igreja Batista do Lago Sul
SHIS QI 16 - Brasília DF - 1996
Arqº Rogério Carvalho de Mello Franco
Fazer maquetes para exibi-las no mercado imobiliário ou político não é condenável. Ao contrário! O que pode causar dano é o esquecimento desse instrumento enquanto facilitador do processo de idealização do produto arquitetônico por parte de quem os concebe tecnicamente.

Com o advento da computação gráfica e suas facilidades, grande parte dos arquitetos parece pensar que fazer maquetes é tão-somente a consequência do processo de pensar e conceber uma ideia quando, de fato, faz isto parte de uma fase anterior, de modelagem prévia para verificação e até do teste de produtos, como bem têm feito ainda os engenheiros.

Sem um estudo mais profundo, talvez precedido de umas quantas hipóteses, assunto para mestrado ou doutorado, educadores mais cultos e capazes poderiam dissertar ou consubstanciar teses sobre o abandono das maquetes de massa, sumidas das pranchetas dos arquitetos.

Arqº Paulo Mendes da Rocha
(*1928)
Enquanto isto, sinto-me responsável por lembrar aos colegas e aos estudantes que pelo menos os professores reitroduzissem a prática do uso de maquetes pelo menos nas escolas, para que as novas gerações de arquitetos possam ter caminhos mais abertos e ampliadas possibilidades de seguir os mestres da Arquitetura como, dentre tantos bons exemplos, o próprio Paulo Mendes da Rocha.

VEJA O FILME COMPLETO! Clique aqui.